Lourival Sant'Anna
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Lourival Sant'Anna

Analista de Internacional. Fez reportagens em 80 países, incluindo 15 coberturas de conflitos armados, ao longo de mais de 30 anos de carreira. É mestre em jornalismo pela USP e autor de 4 livros

Envio de Guarda Nacional para protestos abre crise institucional nos EUA

Última mobilização das tropas contra a vontade um governador foi para proteger uma minoria, há 60 anos

Protesto em Los Angeles  • 8/6/2025 REUTERS/Mike Blake
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A convocação de militares pelo presidente Donald Trump para fazer frente aos protestos contra as detenções de imigrantes na Califórnia abre uma séria crise institucional nos Estados Unidos.

O governador da Califórnia, o democrata Gavin Newsom, qualificou a convocação de "imoral" e "inconstitucional", uma "grave violação da soberania estadual", e um ato “intencionalmente incendiário”. Newsom entrou na Justiça contra Trump, que sugeriu prender o governador.

O presidente americano federalizou a Guarda Nacional da Califórnia e convocou 2 mil de seus integrantes, além de 700 fuzileiros navais. De acordo com o memorando da convocação, a missão dos militares é proteger funcionários e instalações federais, especialmente durante protestos nas proximidades dos prédios do ICE, a agência de imigração e alfândega.

É a primeira vez desde 1965 que um presidente convoca a Guarda Nacional de um estado contra a vontade de seu governador. A última vez em que isso ocorreu foi no Alabama, para proteger manifestantes negros que protestavam pelo direito ao voto, depois de serem atacados por tropas e policiais estaduais com cassetetes e gás lacrimogêneo.

Tanto o presidente Lyndon Johnson quanto o governador George Wallace, um segregacionista, eram democratas. Assim como o presidente anterior, John Kennedy, que também federalizou a Guarda Nacional do Alabama, dois anos antes, para garantir que dois estudantes se matriculassem na Universidade do Alabama.

Os dois presidentes agiram naquele momento para proteger a minoria negra. Agora o presidente Trump convoca as forças federais para reprimir uma outra minoria, os imigrantes, predominantemente latinos.

Trump prometeu na campanha prender e deportar “os piores dos piores” criminosos estrangeiros. Até o dia 1.º, segundo o levantamento do projeto Trac, da Universidade Syracuse, foram detidos 51 mil imigrantes, dos quais 40% não têm histórico criminal.

O governo impôs meta de detenção de 3 mil pessoas por dia. O ICE não tem condições de encontrar tantos imigrantes criminosos -- eles são estatisticamente muito poucos, porque as pessoas costumam migrar para trabalhar, não para cometer crimes.

Para cumprir a meta, os agentes estão abordando os imigrantes em locais onde eles se concentram, como os estacionamentos de grandes lojas de departamento, e detendo todos, indiscriminadamente. É isso que está motivando os protestos.

A base legal usada por Trump para a convocação dos militares é o Título 10 do Código dos Estados Unidos, cuja redação atual, de 1956, prevê a convocação da Guarda Nacional em caso de “rebelião” e de “invasão”.

Esse dispositivo, que tem origem na Lei da Milícia de 1792, não permite que os militares reprimam diretamente a população, mas apenas que protejam funcionários e propriedades federais.

A Lei do Posse Comitatus proíbe o uso das Forças Armadas em atividades de policiamento civil. Só a Lei de Insurreição, de 1807, tem força para suspender essa proibição. Mas essa lei não foi invocada por Trump. Ainda assim, os advogados do governo federal terão de provar que existe “rebelião” ou “invasão” na Califórnia.

Os protestos de Los Angeles contra a detenção de imigrantes são predominantemente pacíficos. Mas o Departamento de Segurança Interna (DHS) afirma que mais de mil manifestantes cercaram instalações federais, atacaram agentes e veículos do ICE.

Entretanto, a polícia de Los Angeles já vinha reprimindo duramente os protestos, e não há sinais de que a situação pudesse sair do controle, como ocorreu no Motim de Los Angeles, depois da absolvição de quatro policiais brancos que espancaram brutalmente o negro Rodney King, de 25 anos.

Na época, o governador republicano Pete Wilson solicitou o apoio da Guarda Nacional da Califórnia. Mais de 4 mil soldados estaduais foram inicialmente mobilizados. Em seguida, o presidente George Bush (pai), também republicano, federalizou a Guarda Nacional e enviou mais 1.500 fuzileiros navais e 1.000 soldados do Exército.

Agora, Trump parece usar os militares não para manter a ordem, já que isso não é necessário no momento, mas para mostrar que é mais poderoso do que o governador da Califórnia, um dos expoentes da oposição e potencial candidato democrata a presidente.

A crise serve ainda para desviar a atenção do descumprimento de sua promessa de prender e deportar criminosos, assim como do noticiário negativo produzido por suas políticas econômicas, o pacote fiscal que tramita no Senado e o rompimento com o empresário Elon Musk.

Em dezembro de 2020, quando tentavam reverter a derrota eleitoral para Joe Biden, assessores de Trump de fora da Casa Branca sugeriram recorrer às Forças Armadas para mantê-lo no poder, segundo depoimentos de funcionários do governo à comissão da Câmara dos Deputados que investigou a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro do ano seguinte. A ideia foi imediatamente descartada por assessores da Casa Branca.

Não há o risco de os militares apoiarem Trump em mais uma aventura antidemocrática. Mas o uso político das Forças Armadas causa dano na imagem delas e na democracia.